Idosa de 98 anos vence batalha contra a Covid-19

Um olhar de saudade se projeta de forma serena para a calçada da Rua Comendador Rodolfo Gomes, no Bairro Menino Deus. Não há uma grande história naquele endereço. O movimento dos carros que passam não desperta curiosidade. Mas ali, a passividade é o cenário perfeito para o repouso da incrível memória de uma vida. Ao centro do pátio do residencial Arcanjo Gabriel, sob curiosos olhares, Dona Thereza Marin Vargas, de 98 anos, volta a ser menina. [caption id="attachment_26656" align="aligncenter" width="896"] Dona Thereza ficou duas semanas em tratamento no Hospital[/caption] “Eu aproveitei bastante, mas a idade pesou sobre mim”, ela diz, conformada por não poder ir mais uma vez – a sexta – para a sua querida Jerusalém. Lá, na Capital de Israel, berço da humanidade, ela realizou várias de suas inúmeras expedições religiosas, cultivando a fé e ajudando o próximo. As lembranças são marcantes e se confundem com a própria trajetória da carola, apelidada de Thereza de Jerusalém pelos amigos. As recordações ainda afloram, mesmo que as vezes a cabeça queira aplicar seus truques. É nesses momentos que o filho Gelci Antonio Dalla Vedova, de 81 anos, entra em cena para, com carinho, ajudar a resgatar o passado. “Não é porque é minha mãe, mas nunca vi tanta vitalidade em uma pessoa”, afirma o corretor imobiliário. Durante aproximadamente duas semanas ele precisou lidar com a angústia de ver a mãe internada no Hospital São Lucas para enfrentar a Covid-19, o seu maior desafio de saúde em quase um centenário de vida. Diagnosticada com doença no dia 12 de junho, Thereza iniciou o tratamento na própria casa de cuidados geriátricos, acompanhada de perto pela gerente do espaço, Elisandra Flores. Por quase duas semanas, a equipe especializada local conseguiu fazer a assistência, mas o quadro se agravou devido a dificuldade de respiração da idosa. “Ela saiu em estado grave e nos disseram que talvez não voltasse mais”, relembra Elisandra. Mesmo com o acompanhamento de um cuidador no Hospital, os dias foram agoniantes. [caption id="attachment_26657" align="aligncenter" width="896"] Elisandra acompanha o dia a dia de Thereza[/caption] Isolada, Dona Thereza ficou duas semanas sem acesso aos rostos que lhe traziam conforto. Depois de muito tempo, voltou a sentir a dor aguda de estar longe de quem ama, uma experiência que já havia vivenciado com a perda precoce dos dois maridos, o pedreiro Isidoro e o enfermeiro Eufrides, que a deixaram quando tinha 24 e 40 anos, respectivamente. Se a dor física do quadro clínico era suportável, não podia se dizer o mesmo da psicológica, que acabou por lhe tirar o apetite, ameaçando a recuperação. Contrariando as estatísticas, as quais atribuem a taxa de 30% de óbito às pessoas com mais de 80 anos contaminadas com o coronavírus no Rio Grande do Sul (Sivep-Gripe), a cozinheira e dona de casa aposentada mais uma vez deu a volta por cima. O retorno ao lar, no entanto, foi um novo desafio. “Mexeu com ela. Não reconhecia as pessoas e estava muito magra. Levou um tempo até voltar à normalidade”, pondera Elisandra. Os netos Vicenzo e Bianca foram importantes nesse processo, mantendo contato com a matriarca por vídeochamada sempre que possível. “Agradeço a Deus por chegar nessa idade”, diz Dona Thereza, ao ser lembrada que se aproxima dos 100 anos. O segredo da longevidade, para ela, está no trabalho. Tudo começou na sua infância, quando acordava às 5h para ajudar a família no campo. Como cozinheira, foi uma das precursoras a oferecer galeto primo canto em Porto Alegre. Também deve grande influência na Igreja, sobretudo com alguns religiosos de sua comunidade, como o Padre Leonardo, a quem ajudou com os estudos. Foram longos anos de contribuição e auxílio a todos que de alguma forma passaram pelo seu caminho. As marcas do tempo se tornaram visíveis, mas não são capazes de tirar o sorriso cativante de Dona Thereza ao ganhar uma bala de caramelo das mãos do filho Gelci. A felicidade e tranquilidade não se escondem mesmo com a máscara, que reserva aos olhos o semblante de ternura. Dona Thereza não sabe ao certo quando chegará o momento de comemorar um século de vida, mas não poupa esforços ao demostrar a sua gratidão a todos que a preparam para essa grande festa. Para ela, depois de superar uma doença tão complexa, é preciso, antes de tudo, celebrar a vida.